«Ressurreição» acompanha um nobre na sua busca por redenção face a um pecado cometido na juventude, a sedução de uma empregada que em resultado do sucedido acaba despedida e forçada a recorrer à prostituição. Anos mais tarde, reencontra-a ao ser convocado para jurado no seu julgamento por homicídio, do qual é injustamente acusada. Confrontado com as consequências trágicas do seu ato passado na vida daquela mulher, sofre uma revolução espiritual.
Esta obra tem a particularidade de ter sido o último e menos reconhecido romance de um dos grandes escritores de sempre, Lev Tolstoi. É interessante ver onde chegou em fim de vida um autor que na meia idade escreveu obras de referência da literatura universal como «Guerra e Paz» e «Anna Karenina». Na velhice Tolstoi não é mais o mesmo, graças a um carácter reflexivo e observador que o levou a questionar, e a questionar-se, constantemente, livrando-o da feliz imutabilidade que caracteriza os espíritos menos inquietos. Este Tolstoi em fim de vida, e que certamente mais mudaria se mais vivesse, renega os seus grandes romances por não cumprirem a função que agora considera primordial – a consciencialização dos leitores. Na sua perspetiva, o romance deve transportar quem o lê a um mundo ficcional à superfície, mas real no seu enquadramento, para que através da empatia criada com as personagens tome contacto com realidades e problemas sociais aos quais não deve ser alheio.
Esta perspetiva não agradou a leitores e críticos, que em vez do romance belo e profundo que as obras anteriores fariam antecipar, encontraram um texto que remete constantemente para reflexões de carácter moral, social e filosófico. Apesar da receção desfavorável, é um romance magnífico. As reflexões são intemporais, sempre tendo em conta o devido contexto, e revelam uma sensibilidade e capacidade de análise extraordinárias. O questionamento é sem dúvida incómodo, e no caso de Tolstoi levou-o a renegar a condição de nobre proprietário e a abandonar a sua casa, família e bens, tendo vindo a falecer pouco depois numa estação de comboios, de pneumonia. A ausência de questionamento é bastante pior, pois desagua necessariamente na pobreza de espírito.
“Todos nós que nos entregamos a uma atividade qualquer precisamos de considerá-la importante e razoável para podermos trabalhar. Portanto, seja qual for o nível em que estacione, o ser humano constrói imediatamente uma conceção da vida e nela insere a sua ocupação, que por instinto considera necessária e razoável. Imagina-se a maior parte das vezes que um ladrão, um traidor, um assassino ou uma prostituta se envergonham da profissão que exercem ou, pelo menos, que a consideram má, mas na realidade isso não sucede. Os homens a quem o destino ou os pecados colocaram em situação definida, por mais imoral que ela seja, arranjam maneira de conceber a vida em geral de forma a que a sua situação lhes apareça como legítima e admissível – e para conservarem esse modo de ver apoiam-se instintivamente nos que se encontram em idênticas condições, nos que concebem a vida com o mesmo critério e que ocupam também situações claras mas anormais. Admiramo-nos de ver ladrões jactarem-se da sua habilidade, prostitutas da sua corrupção e assassinos da sua insensibilidade, mas isso acontece porque estas espécies de indivíduos são restritas, porque se movem em círculos e atmosferas que não têm contacto com os nossos. Já não nos surpreende, por exemplo, ver homens ricos orgulharem-se da sua riqueza – muitas vezes conseguida à custa de roubo ou usurpação, – ou poderosos do seu poder, que não raro significa violência e crueldade. Não notamos a maneira como a conceção natural da vida é desvirtuada por esta gente, assim como o primitivo significado do bem e do mal, e não só o não notamos, como também não nos admiramos. E isto unicamente porque o número daqueles que partilham esta perversa conceção da existência é grande, e porque nos achamos compreendidos nesse número”.
Post parcialmente retirado do meu antigo blog: http://cam_as_i_am.blogs.sapo.pt/
Está disponível uma edição mais recente, de 2010, da Editorial Presença. A foto aqui apresentada não é a da edição da Editorial Minerva, que já é antiga e está em mau estado.
Título: Ressurreição
Autor: Lev Tolstoi
Editora: Editorial Minerva
Ano: 1965