Guia de viagem pelo mundo dos livros

O homem que via passar os comboios

Georges Simenon foi um escritor excecionalmente prolífico que publicou perto de 200 romances, para além de numerosos artigos, contos e novelas. Neste caso, a quantidade não foi inimiga da qualidade, como demonstram as inúmeras obras em que figura a personagem mais emblemática que criou, o comissário Maigret. Os pequenos livros que seguem as suas investigações transportam-nos a cenários maravilhosamente descritos de forma sucinta, pequenas localidades, aldeias, zonas urbanas com um ambiente muito próprio. É ali que Maigret faz a sua observação participante, como um antropólogo em pleno trabalho de campo. Instala-se na pensão local, frequenta o café, passeia pelas ruas e observa os intervenientes que ocasionalmente questiona. E assim, de forma metódica e persistente, desvenda as motivações e os conluios que se escondem em cada crime. São histórias fantásticas na sua aparente simplicidade, indispensáveis para qualquer amante de policiais.

«O homem que via passar os comboios» não tem Maigret como figura principal, mas ultrapassa a qualidade a que esta personagem nos habituou. É uma profunda obra psicológica passada na perspetiva do criminoso, um homem aparentemente normal, respeitável, plenamente integrado na sociedade, que quando confrontado com um acontecimento perturbador opta por enveredar por uma vida de crime. É com alguma incredulidade e bastante deleite que o leitor acompanha esta metamorfose inaudita, que explora brilhantemente os meandros mais negros da mente humana.

“Logo, Kees sonhara vir a ser outra coisa que não Kees Popinga. E era justamente por isso que ele era tão Popinga, que ele o era demasiado, que ele exagerava, porque sabia que, se cedesse num só ponto, nada mais o susteria”.

Título: O homem que via passar os comboios

comboios

Autor: Georges Simenon

Editora: Público – coleção mil folhas

Ano: 2002

Almas Mortas

Na Rússia do século XIX um indivíduo astuto e ganancioso compra pessoas já falecidas. Este exercício macabro tem uma finalidade bastante pragmática: conseguir terras cedidas pelo autocrático governo russo em função do número de servos que se detinha. Enquanto ainda figurassem nos censos, os mortos valiam como vivos, uns e outros meras coisas, objetos indiferenciados, bens transacionáveis, parte integrante das propriedades dos seus senhores, sem qualquer valor sentimental ou o respeito devido à pessoa humana. Os proprietários coniventes, que beneficiam da transação, vão desfilando ao longo do livro numa triste caricatura da mesquinhez daqueles que apoiados numa rígida hierarquia social se regozijam da sua superioridade. A eles se juntam os funcionários corruptos de uma burocracia caduca, completando o quadro de uma sociedade decadente.

«Almas Mortas» é uma sátira brutal e impiedosa, interrompida pela morte do seu autor, que deixou em aberto um final que se adivinha. É, sem dúvida, uma obra maior da literatura mundial, escrita por um dos maiores escritores de todos os tempos. Para ler, reler e sobretudo refletir, porque a história tem o mau hábito de se repetir.

“Não se pode dizer que Tchítchikov tenha roubado, mas sim que se aproveitou. É que cada um de nós se aproveita de alguma coisa: este, da floresta pública; aquele, dos dinheiros públicos; o terceiro rouba os próprios filhos a favor de uma atriz em digressão; o quarto rouba os camponeses para comprar móveis Hambs ou uma caleche. O que se pode fazer se são tantos neste mundo os chamarizes? Restaurantes não só caros mas com preços loucos, bailes de máscaras, festas, danças com ciganas. Como pode alguém conter-se se toda a gente, por todos os lados, faz o mesmo e se também a moda assim o exige – tenta lá conter-te! Até porque é impossível à pessoa conter-se eternamente. O homem não é Deus. Assim, também Tchítchikov, à semelhança dessa gente que por toda a parte se multiplica e adora toda a espécie de confortos, virou o bico ao prego em seu próprio proveito”.

Título: Almas Mortas

almas

Autor: Nikolai Gogol

Editora: Assírio e Alvim

Ano: 2002

Jaime Bunda

A boa literatura não é apenas composta de grandes obras, densas e profundas. O universo literário é tão vasto quanto os diversos estados de espírito dos leitores, daí a sua riqueza e o fascínio que exerce naqueles que se deixam seduzir pelos seus encantos. «Jaime Bunda» é um companheiro muito agradável para os momentos mais descontraídos, tão agradável que os dois livros que Pepetela escreveu com esta original personagem sabem a pouco. É difícil não desejar continuar a seguir as peripécias deste avantajado detetive, que cativa com o seu estilo desajeitado e ingénuo.

No peculiar ritmo angolano, um país em transformação, pleno de idiossincrasias e contradições, serve de cenário às aventuras mirabolantes de um detetive fascinado por romances policiais. Jaime Bunda faz um esforço atabalhoado para deslindar complexos enigmas, tão intrincados quanto as redes da corrupção e injustiça que marcam a sociedade do seu país. Pois apesar do tom satírico e aparentemente leve dos livros, a crítica social está lá, nas entrelinhas.

“JB despejou o copo de vinho tinto, maneira de limpar as vias de entrada para a caldeirada. Com indisfarçável prazer. Nicolau suspirou de alívio, finalmente o grande detetive gostara de alguma coisa. E ficou concentrado no prato para acompanhar o ritmo de Jaime Bunda em plena e espantosa missão de esvaziar em tempo recorde a panela de caldeirada, pedindo mais para poder servir de conduto aos dois funges de que entretanto se servira. O chefe local dos SIG não sabia se nova panela significava aumento da despesa ou se fazia parte da conta, mas pouco lhe interessava, o serviço nunca fora tão mesquinho ao ponto de analisar à lupa o que se comia em refeições de trabalho, ainda por cima com visitantes ilustres. Não diziam que os SIG estavam fora do Orçamento Geral do Estado? O dinheiro saía de um qualquer saco azul. Portanto, também ninguém controlava despesas menores. E provavelmente nem as maiores, mas isso era blasfémia que só se permitia pensar de boca aferolhada”.

Título: Jaime Bunda agente secreto

bunda

Autor: Pepetela

Editora: Dom Quixote

Ano: 2001

Título: Jaime Bunda e a morte do americano

Americano

Autor: Pepetela

Editora: Dom Quixote

Ano: 2003

Morte em Veneza

Um escritor famoso, ascético e cerebral, profundamente dedicado à sua escrita, parte numa viagem que quebra a sua severa rotina, uma aventura perigosa para o seu autocontrolo. Isolado, fora do seu ambiente, desenvolve um fascínio obsessivo por um jovem de extraordinária beleza que observa no hotel em que está hospedado. Sem trocarem uma palavra ou um toque, cruzam olhares dúbios que alimentam uma paixão platónica e incontrolável. Rendido aos seus sentimentos, o escritor entrega-se à sua derradeira decadência.

«Morte em Veneza» é uma grande obra da literatura que tem a particularidade de ter sido adaptada ao cinema por Luchino Visconti, dando origem a uma obra prima do cinema. Não é assim possível falar de uma sem lembrar a outra, pois o filme transporta o livro para uma nova dimensão. Com uma fotografia extraordinária, a fabulosa interpretação de Dirk Bogarde e a excelência da música de Maller, é surpreendente como se pode dizer tanto em tão poucas palavras, pois todo o filme, tal como o livro, é subtil contemplação. Para saborear uma e outra vez, porque o sublime nunca é demais.

“Votado, assim, a suportar em ombros tão delicados o peso das tarefas que o seu génio lhe cometia, e decidido a ir longe, tinha absoluta necessidade de disciplina”.

Título: Morte em Veneza

veneza

Autor: Thomas Mann

Editora: Livros de bolso Europa-América

Ano: 1990

Um estranho lugar para morrer

A capa de «Um estranho lugar para morrer» compara Derek B. Miller a autores policiais escandinavos como Stieg Larsson e Hennin Mankell, uma comparação injusta pois esta obra não é um mero triller policial. É um livro surpreendente, original, profundo sem ser denso e com uma qualidade indiscutível. Apresenta uma personagem complexa em luta com os fantasmas do passado, que num presente improvável se depara com uma situação limite.

A narrativa segue um idoso viúvo e supostamente senil que emigra para junto da neta grávida. Sente-se perto do fim e quer vislumbrar a pequena vida que dará continuidade à sua. A neta perde o bebé, o idoso fica perdido. Reencontra-se num menino, também ele estrangeiro, que salva de uma situação de violência doméstica. Não falam a mesma língua um do outro, nem a do país que os acolhe, mas comunicam. Fogem juntos e o velho pega numa mão de menino pela primeira vez em 50 anos, uma sensação que não esqueceu.

“Não fazias ideia de que eu sabia tanta coisa, pois não? Mas sei. Nunca ninguém me pergunta nada. Por sorte, tenho uma vida interior rica. E, agora, tenho-te a ti”.

Título: Um estranho lugar para morrer

estranho

Autor: Derek B. Miller

Editora: Edições Asa

Ano: 2014

A idade da Inocência

O primeiro romance escrito por uma mulher a ganhar o prémio Pulitzer para ficção, em 1921, «A idade da inocência» é uma obra que merece ser saboreada na sua língua original. Retrata um romance, passado em Nova Iorque na década de 1870, que esbarra em convenções sociais preconceituosas e hipócritas, um tema intemporal que pode facilmente ser transposto para outros contextos. Mas mais do que o enredo, é a forma como este é apresentado que cativa e seduz o leitor. Uma escrita elegante descreve as subtilezas do desabrochar de uma relação que não é bem vista socialmente, entre um homem comprometido e a prima da sua noiva, uma mulher divorciada e sofrida.

Como é um amor censurado, é nas entrelinhas que se desenrola, nos pequenos gestos, palavras e olhares cheios de significado para os dois protagonistas, enquanto permanecem indiferentes para quem os rodeia. Mas o afeto entre os dois é incontrolável, acabando por transbordar e evidenciar-se. E a sociedade é cruel quando confrontada com sentimentos que a desafiam, que são anulados sem piedade, dando lugar a uma existência banal, despojada dos voos do coração.

“There was one episode, in particular, that held the house from floor to ceiling. It was that in which Harry Montague, after a sad, almost monosyllabic scene of parting with Miss Dyas, bade her good–bye, and turned to go. The actress, who was standing near the mantelpiece and looking down into the fire, wore a gray cashmere dress without fashionable loopings or trimmings, moulded to her tall figure and flowing in long lines about her feet. Around her neck was a narrow black velvet ribbon with the ends falling down her back.

When her wooer turned from her she rested her arms against the mantel–shelf and bowed her face in her hands. On the threshold he paused to look at her; then he stole back, lifted one of the ends of velvet ribbon, kissed it, and left the room without her hearing him or changing her attitude. And on this silent parting the curtain fel”.

The-Age-of-Innocence

Título: The age of innocence

Autor: Edith Wharton

Editora: Wordsworth Classics

Ano: 1994

Em português está editado pela Publicações Europa-América

Um dia na vida de Ivan Denisovich

Aleksandr Soljenitsin, vencedor do Prémio Nobel em 1970, conheceu pessoalmente os horrores dos campos de concentração soviéticos, os Gulag, onde foi condenado a passar vários anos. A sua experiência é retratada nesta obra singular inteiramente passada num único dia na vida de um prisioneiro detido por um regime totalitário desumanizador. Rodeado das personagens tipo que se poderiam encontrar neste contexto, do revoltado ao corrompido, as suas estratégias de sobrevivência são descritas de forma simples e direta, levando a refletir sobre o que resta de um homem num sistema que o procura anular. E o que sobra é a luta pela vida, na sua expressão mais básica, o cumprimento das tarefas diárias em condições extremas enquanto se procura maximizar os ganhos e reduzir as perdas.

É um dia vulgar, como tantos outros, sem nenhum acontecimento extraordinário a assinalá-lo. E como tudo é relativo, é um «dia bom» para alguém injustamente privado da sua liberdade num regime onde a justiça e a liberdade nada significam. Porque é bom chegar ao fim do dia vivo, quando mais nada nos é dado a esperar.

“Shukhov adormeceu completamente satisfeito, feliz. Fora bafejado por vários golpes de sorte durante aquele dia: não o haviam posto no xadrez; não tinham enviado a brigada para o Centro; surripiara uma tigela de kasha ao almoço; o chefe da brigada fixara bem as rações; construíra uma parede e tirara prazer do seu trabalho; arranjara aquele pedaço de metal e conseguira passa-lo; recebera qualquer coisa de Tsezar, à noite; comprara o tabaco. E não caíra doente. Um dia sem uma nuvem carregada, sombria. Quase um dia feliz”.

Título: Um dia na vida de Ivan DenisovichIvan Denisovich

Autor: Aleksandr Soljenitsin

Editora: Círculo de Leitores

Ano: 1974

A Grande Mudança

«A Grande Mudança» é uma leitura obrigatória para qualquer amante de livros. Merecido vencedor do National Book Award e do Prémio Pulitzer, segue uma figura improvável do século XV, Poggio Bracciolini, na sua busca pelo conhecimento. Servidor de pontífices romanos enquanto escriba especializado em documentação oficial, a sua verdadeira paixão eram os manuscritos antigos que procurava incessantemente em mosteiros recônditos espalhados pela Europa. Numa dessas buscas encontrou o que procurava, um manuscrito que iria mudar o mundo.

Da Natureza das Coisas, de Lucrécio, poema datado do século I a. c., expõe a doutrina epicurista desenvolvida na Grécia Antiga, segundo a qual o domínio de si próprio seria o objetivo daquele que almeja a verdadeira felicidade. A filosofia – não a doutrina religiosa – constituiria o meio para atingir esse fim, ideia perigosa nos tempos de Bracciolini, que apesar disso o divulgou. Stephen Greenblatt expõe o extraordinário impacto que a divulgação do poema teve no desenvolvimento do pensamento moderno, ao inspirar figuras marcantes como Galileu, Darwin e Einstein. Uma obra essencial para compreendermos o mundo em que vivemos.

“O que o filósofo grego oferecia não era ajuda para morrer, mas ajuda para viver. Livre da superstição, pensava Epicuro, ficava-se livre para procurar o prazer”.

Título: A Grande MudançaMudança

Autor: Stephen Greenblatt

Editora: Clube do Autor

Ano: 2011

O livro do chá

A pura beleza dos livros pode ser encontrada nesta obra sobre o ritual do chá, escrita no início do século XX por Kakuzu Okakura, intelectual japonês e crítico de arte de referência, tanto no seu país como no ocidente. Eloquente e refinado, exprime a sua amargura perante a hegemonia ocidental que na época se afirmava, ao mesmo tempo que enaltece um símbolo da cultura oriental que representa uma filosofia de vida mal compreendida por aqueles que a não respeitam.

A capacidade de apreciar as coisas simples da vida, os pequenos gestos, objetos, locais, situações, saboreando-os demoradamente segundo um ritual preciso. Parar para sentir a vida, escutá-la, entendê-la profundamente, sem distrações ou excessos, pois “quem é incapaz de reconhecer em si próprio a pequenez das grandes coisas, está apto a subestimar nos outros a grandeza das pequenas coisas”. E assim o chá atravessa fronteiras, línguas, culturas, civilizações, para constituir a ponte na qual a humanidade se encontra, despojada de artifícios e superficialismos. Um pequeno grande livro, ideal para a cabeceira de quem ambiciona o infinito.

“O céu da humanidade moderna está de facto despedaçado na luta ciclópica pela riqueza e pelo poder. O mundo anda às cegas na sombra do egoísmo e da vulgaridade. O conhecimento compra-se com uma má consciência, a benevolência pratica-se por amor à utilidade. O Oriente e o Ocidente, como dois dragões lançados num mar fermentoso, esforçam-se em vão por voltar a merecer a joia da vida. Precisamos novamente de uma Niuka que conserte a grandiosa devastação; aguardamos o grande Avatar. Entretanto, tomemos um gole de chá. O ardor da tarde ilumina os bambus, as fontes murmuram com gosto, o sussurro dos pinheiros escuta-se na nossa chaleira. Sonhemos com a evanescência, e demoremo-nos na bela tolice das coisas”.

Título: O Livro do CháChá

Autor: Kakuzu Okakura

Editora: Biblioteca editores independentes / Cotovia

Ano: 2007

Terry Pratchett

Desta vez não se apresenta um livro, mas a série «Discworld», iniciada em 1983 e com 40 títulos publicados, da autoria do escritor inglês Terry Pratchett, recentemente falecido. Retrata um mundo imaginário em forma de disco sustentado por 4 elefantes por sua vez apoiados numa tartaruga gigante. Com um sentido de humor negro refinado, Terry Pratchet descreve as peripécia dos seus habitantes, bruxas, anões, trolls, feiticeiros, pessoas com queda para a desgraça e mesmo uma morte suis generis, todos eles parábolas do ser humano mais tradicional que habita este nosso mundo.

Não é necessário ler toda a série por ordem, pois cada livro pode ser lido independentemente como uma história autónoma, apesar de eventuais referências a acontecimentos passados. A oferta em português é escassa e dispersa, com edições da Caminho, da Saída de Emergência e da Temas e Debates. Não há razão para a escassez da oferta a não ser a insuficiência da procura, totalmente injustificada num contexto em que os livros de fantasia estão na moda, pois a qualidade da série Discworld ultrapassa em muito outras obras do mesmo género. É inteligente, divertida, imaginativa, educativa e, acima de tudo, proporciona um prazer imenso a quem aprecia um bom livro.

“Bad spelling can be lethal. For example, the greedy Seriph of Al-Ybi was once cursed by a badly educated deity and for some days everything he touched turned to Glod, which happened to be the name of a small dwarf from a mountain community hundreds of miles away who found himself magically dragged to the kingdom and relentlessly duplicated. Some two thousand Glods later the spell wore off. These days, the people of Al-Ybi are renowned for being unusually short and bad tempered”.

Excerto retirado de «The wit and wisdom of the Discworld», de Stephen Briggs (Corgi Books)

Magia

Autor: Terry Pratchett

Editoras: Caminho, Saída de Emergência, Temas e Debates