Georges Simenon foi um escritor excecionalmente prolífico que publicou perto de 200 romances, para além de numerosos artigos, contos e novelas. Neste caso, a quantidade não foi inimiga da qualidade, como demonstram as inúmeras obras em que figura a personagem mais emblemática que criou, o comissário Maigret. Os pequenos livros que seguem as suas investigações transportam-nos a cenários maravilhosamente descritos de forma sucinta, pequenas localidades, aldeias, zonas urbanas com um ambiente muito próprio. É ali que Maigret faz a sua observação participante, como um antropólogo em pleno trabalho de campo. Instala-se na pensão local, frequenta o café, passeia pelas ruas e observa os intervenientes que ocasionalmente questiona. E assim, de forma metódica e persistente, desvenda as motivações e os conluios que se escondem em cada crime. São histórias fantásticas na sua aparente simplicidade, indispensáveis para qualquer amante de policiais.
«O homem que via passar os comboios» não tem Maigret como figura principal, mas ultrapassa a qualidade a que esta personagem nos habituou. É uma profunda obra psicológica passada na perspetiva do criminoso, um homem aparentemente normal, respeitável, plenamente integrado na sociedade, que quando confrontado com um acontecimento perturbador opta por enveredar por uma vida de crime. É com alguma incredulidade e bastante deleite que o leitor acompanha esta metamorfose inaudita, que explora brilhantemente os meandros mais negros da mente humana.
“Logo, Kees sonhara vir a ser outra coisa que não Kees Popinga. E era justamente por isso que ele era tão Popinga, que ele o era demasiado, que ele exagerava, porque sabia que, se cedesse num só ponto, nada mais o susteria”.
Título: O homem que via passar os comboios
Autor: Georges Simenon
Editora: Público – coleção mil folhas
Ano: 2002