Será um diálogo com alguém que não nos compreende um monólogo? Nos «cús de Judas» um médico veterano da guerra colonial relata uma experiência de intenso sofrimento a quem a não viveu, a uma mulher que acabou de conhecer, a nós leitores. Empurrado pelo álcool, parece relatá-la para si próprio, sem esperar retorno, empatia, compreensão. Transmite o desencanto dos Homens irremediavelmente sós, isolados por uma experiência transformadora que não conseguem partilhar.
A leitura de «Os cús de Judas» concede uma nova dimensão à capacidade de compreender o outro, principalmente quando o outro é alguém que viveu uma situação limite. Relata um episódio fundamental e insuficientemente conhecido da nossa história, que não nos deve ser alheio, pois quem o viveu está cá, no meio de nós, e o seu sofrimento permanece, agravado pela incapacidade de o comunicar. Acima de tudo, é um livro obrigatório por estar maravilhosamente escrito, de uma forma impossível de descrever.
“Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilômetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia”.
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano: 1983