Guia de viagem pelo mundo dos livros

Os cús de Judas

Será um diálogo com alguém que não nos compreende um monólogo? Nos «cús de Judas» um médico veterano da guerra colonial relata uma experiência de intenso sofrimento a quem a não viveu, a uma mulher que acabou de conhecer, a nós leitores. Empurrado pelo álcool, parece relatá-la para si próprio, sem esperar retorno, empatia, compreensão. Transmite o desencanto dos Homens irremediavelmente sós, isolados por uma experiência transformadora que não conseguem partilhar.

A leitura de «Os cús de Judas» concede uma nova dimensão à capacidade de compreender o outro, principalmente quando o outro é alguém que viveu uma situação limite. Relata um episódio fundamental e insuficientemente conhecido da nossa história, que não nos deve ser alheio, pois quem o viveu está cá, no meio de nós, e o seu sofrimento permanece, agravado pela incapacidade de o comunicar. Acima de tudo, é um livro obrigatório por estar maravilhosamente escrito, de uma forma impossível de descrever.

“Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilômetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia”.

Título: Os Cús de JudasCús de Judas

Autor: António Lobo Antunes

Editora: Publicações Dom Quixote

Ano: 1983

Holocausto Brasileiro

«Holocausto Brasileiro» é uma leitura interessante pelo tema que aborda. Apoiada em inúmeros testemunhos e registos fotográficos, a jornalista de investigação Daniela Arbex expõe a triste realidade do hospício de Colônia, uma suposta instituição psiquiátrica que ao longo do século XX recebeu os inconvenientes da sociedade – homossexuais, prostitutas, mulheres desprezadas pelos maridos, epiléticos. Sem terem sido sujeitos a qualquer avaliação clínica, os pacientes eram ali encerrados em condições infra-humanas, despojados de todos os bens, direitos, relações. Conviviam numa imundice abjeta e viviam em total promiscuidade, crianças misturadas com adultos. Quando morriam os seus corpos eram vendidos a faculdades de medicina. Por ali passaram 60 000 seres humanos.

O livro faz referência à luta pela humanização dos cuidados de saúde mental impulsionada pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, que defendia a abolição dos hospitais psiquiátricos, o retorno dos pacientes à comunidade e a extinção dos internamentos abusivos, sem critérios clínicos que o justificassem. Uma mudança de paradigma nem sempre fácil na sua concretização, pois a falta de estruturas comunitárias de apoio pode empurrar as famílias afetadas por questões de saúde mental para situações de desespero e os doentes para condições de indigência, um tema que daria para outro livro.

“Quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio do Colônia. O objetivo era que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas”.

Holocausto

Título: Holocausto Brasileiro

Autor: Daniela Arbex

Editora: Guerra e Paz

Ano: 2014

O Nome da Rosa

Qualquer romance histórico que se preze apresenta na contracapa a inevitável comparação com «O Nome da Rosa», o que se compreende porque é um livro de referência, mas não deixa de ser desadequado considerando que é uma obra maior da literatura que não pode ser generalizada. Não é comum ter a erudição, inteligência e sensibilidade de Umberto Eco, que num momento de génio produziu esta obra extraordinária, pelo que as imitações reproduzem apenas o esqueleto do livro mas não o essencial. Apresentam bispos maldosos a perseguir monges atormentados por causa de um qualquer manuscrito perdido, mas não afloram o essencial de uma obra única.

«O Nome da Rosa» é uma intriga policial inteligentíssima, que gere de forma genial o suspense e o mistério que este estilo implica. É um romance histórico que faz um enquadramento excecionalmente detalhado e preciso de uma época conturbada. É um drama humano profundo, que retrata a relação mestre/discípulo com uma sensibilidade rara. É um belo exercício de escrita, subtil e rico, que dá gosto reler. É, acima de tudo, uma obra que merece ficar na história da literatura e que retrata um momento essencial dessa mesma história: a censura da igreja católica medieval às obras da antiguidade clássica pré cristã, escondidas em bibliotecas impenetráveis, apagadas de pergaminhos reutilizados, copiadas por monges que as não deviam tentar compreender, uma tarefa que se vem a revelar impossível para as mentes inquisitivas.

 “Porque nem todas as verdades são para todos os ouvidos, nem todas as mentiras podem ser reconhecidas como tais por um espírito piedoso, e os monges, enfim, estão no scriptorium para levar a cabo uma obra precisa, para a qual devem ler certos volumes e não outros, e não para seguir qualquer insensata curiosidade que os colha, quer por debilidade da mente, quer por soberba, quer por sugestão diabólica”.

Eco

Título: O Nome da Rosa

Autor: Umberto Eco

Editora: Difel

Ano: 1996